Resumos

Efeitos de looping e a expansão do conceito de doença mental

30/01/2023
Efeitos de looping e a expansão do conceito de doença mental

HASLAM, N. Looping effects and the expanding concept of mental disorder. Journal of Psychopathology, v. 22, n. 1, p. 4–9, 2016.

O autor parte da ideia de Ian Hacking de que os conceitos que utilizamos para descrever e nomear nossa experiência estão sempre evoluindo e que, à medida que novos conceitos vão surgindo para explicá-la, a própria realidade dessa experiência é alterada como um efeito colateral.

Em termos concretos, Haslam comenta a evolução do conceito de doença mental desde o primeiro DSM, quanto tinha 106 categorias para as mais de 300 categorias do DSM-IV-TR e indo além disso no atual DSM-5 e diz que as pessoas moldam seu comportamento e compreensão de si mesmas em resposta a essas modificações no conceito de doença mental. 

Para fazer a análise dessa mudança no conceito de doença mental, o Haslam trabalha com a extensão semântica dos diagnósticos do DSM, a partir de duas ideias:  a expansão horizontal e a expansão vertical dos diagnósticos do DSM.

Uma expansão horizontal ocorre quando a mudança envolve a contração ou expansão qualitativa dos fenômenos abordados pela categoria, que passam a abranger um território novo que antes não era coberto pelo DSM. Por exemplo, quando um conceito cresce para incorporar fenômenos novos. Uma expansão vertical ocorre quando um significado fica mais ou menos rigorosamente definido ou pela modificação do nível quantitativo em que algo é considerado patológico, e também pode ocorrer quando se relaxa os critérios para considerar algo patológico. Usando essas categorias de análise, é possível investigar se o conceito de doença mental está se expandindo ou se contrasdfindo desde a primeira edição do DSM. A seguir seguem alguns resultados.

Expansão horizontal

O DSM-I originalmente continha 8 grupos de doenças mentais. Além de modificações de terminologia, o DSM-II introduziu um novo grupo de "Sintomas especiais", que passou a considerar como patologia, pela primeira vez, os tiques, problemas de sono (além do sonambulismo do DSM-I) e os distúrbios de alimentação.  O DSM-II também passou a incluir grupos populacionais que não eram tratados antes: as crianças e os adolescentes, incluindo agressividade, delinquência, ansiedade nesses grupos de idade. O DSM-II também passou a considerar abuso de substância como uma categoria diferente da adicção, para uso episódico e habitual de bebida em excesso. Isso exemplifica "uma tendência para o DSM-II expandir o conceito de doença mental para novos domínios de sintomas (ex: sono, alimentação, uso de drogas) e para novas populações (ex: crianças) e assim patologizando novos fenômenos".

No DSM-III, separou os transtornos de personalidade de outros agrupamentos, separou a neurose em transtornos de ansiedade, de humor e dissociativo (além de eliminar a categoria de neurose). O DSM-III também adicionou condições totalmente novas a vários grupos, adicionou o transtorno de identidade de gênero (uma condição de gênero, não de sexualidade) ao grupo de transtornos sexuais e incorporou ao grupo dos transtornos de ansiedade o medo social e a timidez extrema ("fobia social"), que não estavam representados entre no grupo das neuroses do DSM-II. A expansão horizontal do conceito de doença mental continuou nas edições seguintes do DSM. Por exemplo, no DSM-5 o jogo foram incluídas pela primeira vez as "adicções comportamentais", onde a dependência é uma atividade e não em uma substância.

"Edições sucessivas do DSM de 1952 a 1980 aumentaram progressivamente a amplitude de fenômenos que se qualificam como exemplos de doença mental"

Expansão Vertical

A expansão vertical ampliou o conceito de doença mental ao tornar mais flexível as condições que definem algumas patologias que já existiam. Fatos clínicos pouco severos passaram a ser considerados transtornos.  Por exemplo, a exclusão do luto no DSM-5: antes pessoas que tivessem perdido alguma pessoa amada nos últimos 2 meses eram excluídas do diagnóstico de depressão. A partir do DSM-5, estar em luto recente pode ser diagnosticado como depressão. Outro exemplo foi a flexibilização, do DSM-III para o DSM-5, do conceito de evento traumático, que permitiu aumentar os diagnósticos para Transtorno de Estresse Pós-Traumático (TEPT). "Todos esses exemplos demonstram a tendência consistente dos DSMs mais recentes a definir os limites de transtornos para baixo, portanto definindo a prevalência para cima" (p. 7).

"O DSM-5 contraiu a normalidade através da expansão vertical da anormalidade"

Efeitos de looping?

Em música, looping é um trecho da música que é repetido. Em lógica de programação, looping se refere à repetição de uma parte do programa até que exista uma condição que interrompa essa repetição. De forma geral, o termo looping pode ser compreendido como a repetição cíclica de um fenômeno em que cada interação/repetição pode ser modificada pelas propriedades das interações anteriores, o que cria a possibilidade de que a cada nova repetição o fenômeno ocorra de forma diferente. Haslam usa esse conceito para explicar como o crescimento constante dos diagnósticos do DSM, edição após edição, traz efeitos que não só afetam as pessoas diagnosticadas e as políticas públicas relacionadas à política mental, mas também facilitam e abrem caminho para novas expansões do conceito de doença mental nas edições futuras do DSM.

"A doença mental tem expandido continuamente seu território para incorporar fenômenos que antes poderiam ter sido compreendidos como falhas morais (ex: abuso de substância, alimentação descontrolada), fraqueza pessoal (ex: disfunções sexuais), problemas médicos (ex: distúrbios do sono), pontos fracos (ex: timidez) ou vicissitudes ordinárias da infância (ex: déficits de atenção)" (p. 8).

O autor cita algumas consequências da inflação nos diagnósticos:

  • aumento da medicação
  • estimativas exageradas da prevalência de transtornos na população
  • fuga de recursos que poderiam ser destinados para problemas mais severos

Para o autor, essas não são as piores consequências, que são aquelas devido ao efeito de looping: as implicações para a autocompreensão das pessoas com transtornos e a compreensão que a sociedade tem delas. As mudanças na compreensão dos profissionais sobre o que é uma doença mental afeta a autoimagem das pessoas que recebem diagnósticos psiquiátricos.

Com o tempo, mais e mais pessoas passam a receber diagnósticos psiquiátricos. A doença mental passa a ser normalizada e o estigma da doença mental diminui porque as pessoas passam a considerá-la uma aflição do dia-a-dia. A cultura de modo geral passa a ter visão da doença mental como algo comum. A maior tolerância e visibilidade das doenças mentais fazem com que se relaxe ainda mais os limites para o conceito daquilo que seria uma doença mental. "O efeito de looping é, em essência, um ciclo virtuoso de aceitação e preocupação crescente".


Se você se interessou por esse tema, talvez também tenha interesse em participar de uma roda de conversas do LAPSUS - Laboratório de Psicopatologia, Sujeito e Singularidade, da Faculdade de Psicologia da Universidade Federal do Amazonas, com  Fabrício Donizete da Costa, que ocorrerá no próximo dia 13/02/2023, às 19h: "Sobre as relações entre a (bio)psiquiatria e o neoliberalismo: brechas possíveis para uma outra psiquiatria?". O evento é online e as inscrições podem ser feitas aqui: https://forms.gle/DfDyXbUqVRaRxaP68