Foto: Manifestantes invadem Congresso, Palácio do Planalto e STF © Marcelo Camargo/Agência Brasil
O contexto deste post
No último fim de semana, eu tive um susto quando vi as imagens da invasão do Congresso, do STF e do Palácio do Planalto. Nada ali parecia fazer muito sentido, apesar da história dos 4 últimos anos do governo federal. O que aconteceu foi planejado ou fugiu do plano? Diariamente, o ex-presidente Bolsonaro discursava contra as instituições, fazia ameaças, estimulava seus seguidores a sentir ódio pelo Poder Judiciário. Ainda assim, faziam apenas 7 dias que um número muito maior de pessoas tinha ido à posse do Presidente Lula, sem que ocorressem conflitos ou problemas de segurança ali. O que estava acontecendo?
Ao longo das horas, e depois dos dias, as informações foram aparecendo, indicando uma movimentação nas redes sociais para uma manifestação em Brasília no domingo. Depois um áudio foi divulgado em que se soube que o comando da Polícia Militar do Distrito Federal não só não conteve o acesso à Praça dos Três Poderes, mas também ajudou os manifestantes a se dirigirem para lá, fazendo sua escolta.
A história é longa e ainda está acontecendo e se desdobrando. Hoje, por exemplo, ocorreu a prisão do ex-ministro da Justiça do governo Bolsonaro, Anderson Torres, que foi para os Estados Unidos no dia da invasão e acabou de retornar ao Brasil. Existe a hipótese, ainda em investigação, de que o objetivo era causar um caos tão grande que obrigasse o Exército Brasileiro a proclamar um estado de exceção e assumir o governo federal. Ou seja, "ser obrigado" a dar um golpe de estado.
É estranho que, após 5 dias, o Exército Brasileiro ainda não tenha manifestado1 uma única palavra de apoio à democracia, a favor da defesa do poder instituído pelo voto, em respeito à segurança da capital, ou se manifestado contra os atos antidemocráticos que aconteceram em Brasília no dia 8. E acredito que nossos generais - mesmo que sejam golpistas e traidores da Constituição Federal de 1988 - não seriam estúpidos a ponto de fazer uma destruição de tal proporção às sedes dos três poderes totalmente documentada com vídeos nas redes sociais enviados pelas próprias pessoas que estavam fazendo a invasão. Muitas dessas pessoas ligadas ao movimento bolsonarista estavam acampadas na frente de QGs pelo Brasil, com apoio do Exército. Por isso, eu acredito que, se houve apoio institucional, a ideia não era fazer o quebra-quebra que terminou acontecendo e, por isso, eu discuto a impossibilidade de haver controle sobre um grupo.
Essas questões políticas e históricas estão todas ainda ocorrendo, podem ter mais de uma forma de ver e interpretar os fatos, e eu não vou me deter nisso. O meu objetivo aqui é discutir o que levou a massa de eleitores de Bolsonaro a invadir, depredar os prédios públicos, destruir obras de arte, por em cheque a estrutura de poder pensada por Montesquieu.
Ou seja, o que eu quero falar da psicologia dos grupos.
Como Freud via as massas
O texto clássico de Freud sobre grupos é a Psicologia das Massas e Análise do Eu2. Nele Freud postula que é a identificação com um objeto externo (o líder) o que une as pessoas que fazem parte de uma massa organizada. A identificação é "a mais antiga e original forma de ligação afetiva" (Freud, 2011, p.63). O que temos então é um afeto pelo líder sendo o elemento que agrega a massa. Esse afeto vai determinar efeitos na conduta dos indivíduos da massa. Freud fala também no enamoramento, como seus efeitos sobre o Eu: o objeto amado passa a ter alguma isenção de crítica, o objeto (no caso, o líder, Bolsonaro) passa a ser blindado contra defeitos. Um caso extremo do enamoramento é o fascínio e a servidão enamorada. No caso da identificação, "o Eu se enriquece com os atributos do objeto", enquanto no fascínio e na servidão enamorada o eu "está empobrecido, entregou-se ao objeto, colocou-o no lugar de seu mais importante componente" (p. 73).
Temos então uma massa de pessoas identificadas com Bolsonaro, que se sentem fortalecidas por características dele, que percebem em si uma força que não é delas, mas que supõe virem dele. Da identificação, elas podem passar a um nível de afeto mais intenso, a servidão enamorada, em que sua capacidade de reflexão e crítica são prejudicadas: elas já não pensam por si. Todos os atos de Bolsonaro são acompanhados de ampla divulgação, sempre buscando comunicar aos seus seguidores um ideal de política, de costumes, de economia, de cultura, que são logos assumidos por essa massa, que passamos a chamar de gado bolsonarista.
Uma consequência desta [a identificação], entre outras, está em que o indivíduo limita a agressividade frente à pessoa com a qual se identificou, poupa esta e lhe dá ajuda.
Freud, 2011, p. 69.
É interessante notar o relato de apoiadores de Bolsonaro que não se compadecem com os quase 700 mil mortos da COVID-193, considerando isso um fato normal da pandemia. Os seguidores o poupam de críticas, atacam adversários e até criam provas contra si mesmos. Levando em conta que a agressividade é fonte não só da violência, mas também é o afeto que está na base do comportamento de autopreservação, ao limitar sua agressividade frente ao líder, a massa bolsonarista aceita para si os mesmos riscos dos quais tenta defender o líder: ao mesmo tempo em que negam crimes de Bolsonaro contra a democracia, seus seguidores cometem esses mesmos crimes e divulgam as provas nas redes sociais.
O que une os bolsonaristas?
Como diz Freud, a identificação não é total, mas "parcial, altamente limitada, tomando apenas um traço da pessoa-objeto" (p. 64). Qual seria esse traço parcial que une os invasores do domingo com Bolsonaro? Eu vou lançar uma hipótese: suponho que seja um sentimento muito comum nas crianças: a incapacidade de aceitar a realidade, quando ela fere seu narcisismo. Inúmeros foram os ataques a jornalistas, quando estes faziam perguntas que colocavam em dúvida a postura ou intenção do ex-presidente Bolsonaro. Com ataque de fúria, como a criança que faz birra, quando as coisas não são de acordo com seus desejos, Bolsonaro interrompia entrevistas ou interlocutores. Guiados por esse traço, agora os bolsonaristas tentam derrubar um governo eleito.
Pode haver objeção à minha hipótese, por exemplo, sugerindo que o traço característico citado por Freud seria o extremismo e não a incapacidade para aceitar uma realidade adversa. Eu contraponho essa objeção com um dado: nem todos os apoiadores de Bolsonaro são extremistas. Ele teve 49% dos votos na eleição de outubro, mas apenas 18,4% dos brasileiros concordam com as invasões de domingo. O fato é que Bolsonaro demonstrou desde sua posse, em 2019, a falta de respeito com a ordem constituída, com ministros, com funcionários públicos, com quem quer que estivesse contra sua vontade. Apenas sob muita pressão ou quando ameaçado pela justiça, ele cede. E, quando cede, ele adoece4.
Uma outra questão importante é perceber que também existe massa do outro lado. Os apoiadores de Lula se identificam com ele e também sofrem os mesmos efeitos da reunião em grupo. Mas os seguidores de Lula não ocuparam os três poderes no último domingo. Em que diferem essas duas massas? Pelo que vimos até aqui, é aquele traço tomado da pessoa-objeto. Se as duas massas são diferentes, é em seus líderes que devemos buscar a chama que as anima e aglutina.
Para Freud, na massa, o indivíduo tem o "enfraquecimento da aptidão intelectual, a desinibição da afetividade, a incapacidade de moderação e adiamento, a tendência a ultrapassar todas as barreiras na expressão de sentimentos e descarregá-los inteiramente na ação" (p. 77). Essa frase pode ser uma síntese explicativa do que vimos acontecer no último dia 8.
O que forma a base dos grupos
Eu vou retomar um termo de José Bleger5: sociabilidade sincrética, ao qual ele opõe o termo mais facilmente compreensível de sociabilidade por interação (aquela atividade que acontece no grupo a partir da interação entre seus membros). Para Bleger, a estrutura básica de todo grupo é um tipo de não-relação que se estabelece entre os indivíduos e que está em um nível pré-verbal (BLEGER, 2011, P. 102). Ele dá um exemplo simples dessa não-relação:
Numa sala, encontra-se uma mãe lendo, olhando a tela da televisão ou costurando; na mesma sala encontra-se seu filho concentrado e isolado em seu brinquedo. Se nos guiarmos pelos níveis de interação, não vamos encontrar comunicação entre essas duas pessoas: não se falam, não se olham, cada uma atua independentemente, de modo isolado, e podemos dizer que não há interação ou que estão incomunicáveis. [...] a mãe, num determinado momento, deixa o que estava fazendo e sai da sala; o menino para imediatamente sua brincadeira e sai correndo para estar com ela.
Bleger, 2011, p.107
Este tipo de não-relação, que Bleger chamou de sociabilidade sincrética, está na base de qualquer grupo. Não é necessário falar, se manifestar ou entrar em um acordo explicitamente. Algo está lá na base e é matriz do grupo. Ou seja, há algo que está fora do âmbito da linguagem, fora da ação dirigida do pensamento e que é o que gera a unidade daquilo que chamamos grupo.
Kaës6 criou o conceito de alianças inconscientes, que expressa esse vínculo não conhecido que está na base de todo grupo. Um tipo particular de aliança inconsciente é a aliança ofensiva, que se estabelece com o objetivo de atacar, exercer influência, dominar ou destruir um outro.
Chamei de aliança inconsciente uma formação psíquica intersubjetiva constituída pelos sujeitos de um vínculo para reforçar em cada um deles e estabelecer, na base de seus vínculos, os investimentos narcísicos e objetais de que eles têm necessidade, os processos, as funções e as estruturas psíquicas que lhe são necessários ...
René Kaës, 2011, p. 198
É possível controlar um grupo?
Retornando à questão posta no título desse post, seria possível alguém planejar os ataques que aconteceram no domingo, esperando que a massa de 3000 pessoas agissem de acordo com um script pré-estabelecido, possivelmente invadindo o Congresso, o STF e o Palácio do Planalto, lá implantando um acampamento como os que existem na frente dos quartéis e que nada sairia dos planos? A minha resposta é não. O motivo da impossibilidade não é a incompetência de Bolsonaro ou de seu primeiro escalão.
O motivo é, como vimos acima, que o grupo possui um movimento próprio que independe das vontades individuais dos membros do grupo. Mesmo o líder, que é um dos membros, não tem esse poder. Ele pode inspirar, dar o tom do grupo fornecer o traço distintivo que une as pessoas, mas o grupo possui um movimento próprio que transcende qualquer vontade individual. A esse movimento, Pichon-Rivière chamou de processo grupal.
Podemos considerar diferentes grupos:
- O grupo liderado por Ana Priscilla, que aparece num vídeo desse post
- O grupo formado por todas as 3000 pessoas que estiveram na praça dos três poderes no domingo, 8/jan
- Bolsonaro, seus ministros, os generais e as 3000 pessoas que estiveram na praça dos três poderes no domingo, 8/jan
- Os financiadores dos atos antidemocráticos e as 3000 pessoas que executaram o plano
Não importa o grupo considerado, seu tamanho, sua capacidade estratégica, o carisma de seu líder, sua capacidade financeira ou de gestão. Todos os grupos estão sujeitos a um movimento que não pode ser controlado, uma vez que o controle pressupõe um centralização de comando.
Não estou dizendo que não foi planejado ou que não houve intenção. Isso é o inquérito policial que vai definir. Eu discuti, sob o olhar da psicologia dos grupos, a impossibilidade de que o que aconteceu tivesse sido planejado para acontecer da maneira que ocorreu. Como escreve Kaës (2011, p.24), "a massa é louca e torna louco o individuo"7. Sempre se deve esperar pelo imprevisto quando as pessoas se reúnem em grupo. Podemos dizer que o conceito de processo grupal de Pichon-Rivière poderia ser expressado, de maneira simplista e não-técnica, assim: o grupo tem vontade própria.
Notas
1 Poucas horas depois do início da invasão, ela já havia sido condenada por representantes de vários países: https://twitter.com/dw_brasil/status/1612214886880219136 ↑
2 FREUD, Sigmund. Obras Completas. 15: Psicologia das massas e análise do Eu e outros textos: (1920-1923) / Sigmund Freud. Trad. Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 2011. ↑
3 Considero que esse número é causado não só pelo vírus, mas também pela incompetência de gestão de Bolsonaro. Na Índia, que tem uma população de 1,4 bilhão de pessoas (7 vezes mais que o Brasil), o número de mortes por COVID-19 é menor: 531 mil mortos na data de hoje. Mais informações no site sobre a CPI da Pandemia. ↑
4 Geralmente quando isso acontece, Bolsonaro passa mal, é internado com algum problema intestinal, sempre muito bem documentado nas redes sociais, como foi visto nessa semana. ↑
5 BLEGER, José. O grupo como instituição e o grupo nas instituições. In:______. Temas de Psicologia: entrevista e grupos. São Paulo: Martins Fontes, 2007. ↑
6 KAËS, René. Um singular plural: a psicanálise à prova do grupo. São Paulo: Edições Loyola, 2011. ↑
7 Em francês, La foule est folle e elle rend fou l'individu. ↑