Estava lendo um livro do Ricardo Goldenberg que situa um embate de Lacan com Sartre no ano de 1964.
Eu não estava lá e não sei dizer se foi um embate ou o embate com Sartre. Porque parece que o Lacan tinha embate com todo mundo. Estou exagerando?
O que o Ricardo Goldenberg [1] está apresentando nessas páginas da imagem é a questão da consciência, que Lacan tinha conceituado (7 anos antes do Seminário 10, que estamos lendo no @lapsus.ufam) com uma definição materialista do fenômeno da consciência:
*é algo que se produz toda vez que temos uma superfície tal que possa se produzir nela uma imagem* [2]
Eu gostei muito da citação que aparece na imagem:
*Eu não sou um poeta, sou um poema. Um poema que está sendo escrito* [3]
Essa citação pode ser lida de muitas maneiras. O que acredito que que Lacan diz é que não somos o autor exclusivo da nossa história, mas que a própria história que vai se escrevendo a cada dia é que é aquilo que somos. Não existe o homenzinho lá dentro da cabeça que fica apertando comandos.
Eu vejo essa forma de conceber a pessoa como muito libertadora. Se o que somos é aquilo que vai se escrevendo a cada dia, então podemos escrever outra coisa. Essa suposição, que é mais uma suposição de movimento que de liberdade, pode ser questionada (como todas as ideias!).
Por exemplo, eu poderia perguntar que tipo de história pode escrever uma pessoa que mora em Gaza e que agora, enquanto estou escrevendo isso aqui (24 maio 2024) está sendo bombardeada. Se ela sobrevier, ela vai para um hospital, que também está sendo ou foi bombardeado. Se o hospital não tiver sido destruído, pode haver muito poucos profissionais para atendê-la, porque eles estão sendo assassinados. Mas vamos imaginar que o profissional de saúde está vivo e está no hospital. Ele enfrente a falta de medicamentos porque os comboios que levam alimentos, água e medicamentos para Gaza estão sendo destruídos. A única saída é ir embora de Gaza. Mas a saída é a passagem de Rafah, na fronteira com o Egito, que foi invadida por Israel faz alguns dias. Então, uma pessoa em Gaza não é poema nenhum. Ela está fodida.
Não são alvos militares que estão sendo atacados. São alvos civis, hospitais, crianças, adolescentes, adultos e idosos, que trabalham em escolas, em feiras, em escritórios, em supermercados, em hospitais, etc.
Eliminar população civil é a definição de genocídio [4].
Mas, quando comecei, eu queria era fazer um post sobre psicanálise, então vou voltar ao tema. Vou fazer isso com mais uma citação:
*Mas o que interessa Freud é saber por que fios a marionete é conduzida.* [5]
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[1] GOLDENBERG, Ricardo. Psicologia das massas e análise do eu: solidão e multidão. Rio de Janeiro: Editora Civilização Brasileira, 2014.
[2] Ou seja, a consciência está no campo do imaginário. Na tradução brasileira do Seminário 2, 2ª edição pela Zahar, está traduzido com outras palavras na pagina 72
[3] Lacan, Seminário 11, prefácio à tradução inglesa
[4] Genocídio, no Dicionário Houaiss: crime contra a humanidade que consiste no extermínio de uma comunidade, grupo étnico, racial ou religioso.
[5] LACAN, Jacques. O seminário, livro 2: o eu na teoria de Freud e na técnica da psicanálise. 2. ed. Rio de Janeiro: Zahar, 2010, pág. 97.