II - Angústia, signo do desejo
Lacan inicia abordando a questão do ensino daquilo que não se sabe: o inconsciente.
I
"O que é ensinar, quando se trata de ensinar o que há por ensinar não apenas a quem não sabe, mas a quem não_ pode _saber?" (p. 26)
Ensinar aquilo que não pode ser sabido, visto que é inconsciente, leva a uma situação de instabilidade. (O texto original francês aqui não usa a palavra instabilidade, mas uma expressão que significa "estar instável" e que usa a palavra *porte-à-faux*, um tipo de obra de arquitetura em que o prédio só tem apoio de um lado, ficando o resto da estrutura suspensa sobre o vazio).
Se o inconsciente é isso que foge, que não se alcança, como é possível haver um ensino sobre ele?
O ensino que Lacan faz em seus seminários se torna possível porque houve um saber que foi agregado ao longo do tempo pela comunidade de analistas. O que chamamos de teoria analítica é essa agregação de conhecimento, mas ela se distancia da experiência mesma da análise. Por isso Lacan diz que tem que ir além da agregação do conhecimento, no sentido de nos aproximar da fonte, nos fazer voltar à experiência (analítica).
Por contar com uma plateia diversa (analistas e curiosos) e por a própria psicanálise conter referências a todo tipo de conhecimento, Lacan diz que é forçado a ir além da experiência, em direção ao fazer compreender. Ele lembra que existem limites à compreensão e que não podemos compreender a vivência autêntica dos doentes. Essa não é a questão. A questão é por qual ângulo abordar a angústia?, já que ela se refere a tantas coisas diferentes:
- aquela que se tem ao ler um texto de Kierkegaard
- aquela paranormal ou patológica que pode apossar-se de nós num dado momento
- aquela que nos trazem os neuróticos
- a angústia do perverso ou do psicótico
Por isso ele diz: "É exatemente aí que adquirem importância os elementos significantes que introduzo [...] eles são o meio pelo qual tento manter o nível necessário para que a compreensão não seja enganosa..." (p. 27)
A primeira pontuação que ele faz sobre a angústia é: "A angústia é um afeto" (p. 28)
Existem 3 caminhos para ensinar algo:
- o catálogo: consiste em esgotar tudo que foi dito e questionar por que se criaram tais categorias, mas tem o inconveniente de criar uma classificação dos afetos. Lacan cita um artigo em que Rappaport [1] segue esse caminho e diz que é embaraçoso por identificar que várias concepções diferentes de afeto não podiam ser reduzidas umas às outras;
- o análogo: que trabalharia com níveis e cita um livro em que a angústia é concebida biologicamente num capítulo; em outro, sociologicamente; no seguinte, culturalmente. Lacan recusa esse método, dizendo que ele leva a uma antropologia.
- a experiência: Lacan se refere a ela como tendo uma função de chave, serve para abrir: "A chave é a forma pela qual funciona ou não função significante como tal." Lacan escolhe esse caminho e diz que todo ensino se refere a um ideal de simplicidade (p. 30)
II
Desde que se começou a fazer ciência, exige-se a máxima simplicidade. Mas pergunta: por que o real seria simples? Ele responde: nada justifica pensar assim, senão "que só há aparecimento concebível de um sujeito como tal a partir da introdução primária de um significante" (p. 31).
Esse significante a que ele se refere e chama de *traço unário* é o primeiro significante a se inscrever no psiquismo. Como, para Lacan, um sujeito é efeito da relação de dois significantes, então: "O traço unário é anterior ao sujeito" (p. 31)
Antes do sujeito se constituir, existia algo, que era simples (o primeiro significante). "Essa é a única coisa que pode justificar, a nosso ver, o ideal de simplicidade" (p. 30).
Assim como havia algo antes do sujeito, "Na análise, às vezes existe o que é anterior a tudo que podemos elaborar ou compreender. Chamarei a isso presença do Outro (A)" [2] (p 31). A angústia está nesse caminho e ela se relaciona com o desejo do Outro. De que maneira? "o desejo do homem é o desejo do Outro" [3] (p. 31).
Lacan passa a discutir o que compreende sobre essa expressão desejo do outro, que se origina em Hegel, e qual diferença existe entre a sua concepção e a de Hegel.
Para Hegel, o Outro é aquele que me vê, aquele com quem me relaciono ou não.
"No sentido Hegeliano, o desejo de desejo é o desejo de que um desejo responda ao apelo do sujeito. É o desejo de um desejante" (p. 33).
Fórmula 1, do que seria o desejo para Hegel:
d(a): d(A) < a, que podemos ler assim:
d(a) | o desejo do desejo |
: | significa |
d(A) | desejo de um ser que deseja |
< | recebe ou espera alguma coisa, "que o Outro instituirá alguma coisa" (p. 33). Aqui não se trata de um sinal de menor, é uma seta apontando para d(A) |
a | aquilo que o sujeito espera, o reconhecimento do outro (aqui eu acredito que Lacan usou a letra a apenas para que a escrita mantivesse os mesmos símbolos da fórmula do desejo dele mesmo, porque acredito que não existe um objeto a na concepção de Hegel... comentem, por favor, se eu estiver errado) |
Para Lacan, "o Outro existe como inconsciência constituída como tal" (p. 32).
Fórmula 2, do desejo para Lacan:
d(a) < i(a): d(A/), que podemos ler assim:
d(a) | o desejo do desejo |
< | está apoiado |
i(a) | numa imagem |
ou seja, d(a) < i(a) o desejo de desejo é uma fantasia.
: | é equivalente |
d(A/) | ao desejo do grande Outro (Outro barrado, ou seja, não simplesmente o campo da linguagem, mas todos aqueles que se submeteram a esse campo, ou seja, ao outro com quem estou me relacionando e que ocupa uma posição simbólica: irmão, pai, mãe, filho, professor, presidente, o que for...) |
ou seja, *i(a): d(A/), a fantasia que apoia o desejo de desejo é equivalente àquilo que o Outro está desejando
III
É um objeto a que deseja (p. 35).
Lacan localiza um ponto em comum entre a sua concepção de desejo e a de Hegel: o sujeito fica marcado pela finitude por ser afetado pelo desejo. "Por causa da existência do inconsciente, podemos ser esse objeto afetado pelo desejo" (p. 35)
O desejo é uma falta, que participa de algum vazio, e que pode ser preenchida de várias maneiras, mas não de qualquer uma. Aí entra a questão da singularidade, cada um vai preencher esse vazio de um jeito.
Essa falta é inconsciente. Ao tomar o outro por objeto do meu desejo, eu dou a ele o que ele espera: ser objeto do desejo do outro. "Ou seja, em nossa própria concepção de desejo, eu te identifico, a ti com quem falo, como o objeto que falta a ti mesmo" (p. 37).
E para fechar com chave de ouro, Lacan diz:
"Ao rumar por esse circuito obrigatório para atingir o objeto do meu desejo, realizo para o outro justamente o que ele procura" e assim o outro que é objeto de meu amor "cairá forçosamente na minha rede" (p. 37).
Depois de toda essa volta, vamos lembrar: falando tanto de desejo, Lacan está falando de angústia, sem dizer o que a angústia é (ao contrário do que fizeram os existencialistas).
[1] Rapaport, D. (1953) On the Psycho-Analytic Theory of Affects. International Journal of Psychoanalysis 34:177-198
[2] Lacan usa a letra A para representar o Outro (lê-se "o grande outro"), que seria o campo da linguagem, o campo simbólico, mas também o conjunto de todos os outros sujeitos.
[3] Existem muitas maneiras de pensar essa afirmação. Uma é dizer que o nosso desejo nem é nosso, pois aponta para outro desejo. Outra maneira é dizer que desejamos aquilo que está circulando na linguagem, circulando no desejo das pessoas, como aquele iPhone que eu vi no anúncio, etc...
- Seminário 10: A angústia
- I - A angústia na rede dos significantes
- II - Angústia, signo do desejo